Antônio de Souza Filho
Meus Escritos
Textos
A primeira vez de um menino
 
Se você está pensando que eu vou falar de libidinagem, tire seu cavalinho da chuva, não é nada disso. Mas espere, você já começou a ler, agora continue, tomara que goste.
 
Trata-se de um menino que vivia louco para crescer e sair da vida difícil que levava. Ele não tinha a melhor das atrações pessoais, era feio, branquelo, sardento, cabelo de espeta caju, vivia escondendo o riso porque seus dentes eram trocados, franzino, mas forte; usava quase sempre a mesma roupa: um calção marrom uma camiseta de regata e um chinelo de alça. O que o tornava diferente era o seu coração, era bondoso e muito prestativo, tudo o que pediam ele fazia com prazer, embora resmungasse por dentro.
 
Ele tinha uns hábitos estranhos, falava sozinho e até gesticulava, quando estava aflito quase sempre se batia como estivesse espantando mosquitos. Algumas pessoas que passavam por ele sempre comentavam: – Esse menino parece que é doido, fala sozinho; quando era notado ele começava a ri e dizia ter um amigo invisível.
 
Pelo menos um dia na semana ele acompanhava uma senhora, sua vizinha, até a casa onde ela fazia faxina, pedia-lhe que o fizesse por medo de andar sozinha. Ele a deixava no local depois ia buscá-la e nunca perguntava nada. Vez ou outra ela dava um dinheirinho para ele, embora nunca fosse cobrada. Todas as noites Ele rezava, vivia pedindo um emprego legal e nas suas orações incluía a tal Senhora.
 
Certo dia perguntou da tal mulher: - O que os seus patrões fazem?! Eles são ricos, não é mesmo?! Ela olhou para Ele, andando com gestos de cansada e falou: Até que enfim você abriu a boca, né?! Agente vem e volta e você é calado o tempo todo e porque você quer saber o que eles fazem?! O menino respondeu: - Por nada não, é que eu ando sondando ver se consigo algum emprego. Ela olhou-o novamente e falou: - É, mas lá na casa deles não tem nada para você fazer, já tem gente demais, depois você é muito pequeno, acho até que eles vão me dispensar; e continuou: - Eles são donos de lojas lá pelo centro da cidade, mas reclamam de tudo. O menino ficou pensando e calou-se. Na outra semana foi como Ela previa; os patrões a dispensaram.
 
O menino procurou saber que lojas eram que os ex-patrões de sua amiga tinham, ficou sabendo com os vizinhos deles que eram lojas de confecções e que eram bem movimentadas, soube também que essas lojas admitiam menores como office boys e Ele se animou. No dia seguinte bateu à porta dos tais lojistas; uma mocinha com vestes de doméstica veio atendê-lo: - O que tu quer moleque, aqui ninguém dá nada pra ninguém, vai andando. Ele respondeu: - Eu quero falar com seu patrão é só entre ele e eu; Ela retrucou: - Ah, é? Pensa que eu caio nessa, vai andando vai. Ela já ia entrando quando o menino falou: - Tá bom, mas quando eu falar com Ele vou dizer que você me expulsou daqui. Ela olhou pra trás jogou a saia e entrou rindo. O menino fez a mesma coisa por três dias seguidos, no quarto dia ela cedeu; - tá bom moleque chato vou chamar a mulher dele; Ele disse: - Não, por favor o assunto é só com Ele.
 
O fato é que a mocinha já tinha falado para a sua patroa da intenção do tal menino e ela já estava enfezada com isso e sempre dizia para o marido: - Tem um moleque que tá todo dia aqui querendo falar com você e diz que o assunto é somente consigo e o marido sempre dizia que não queria falar com ninguém muito menos com um menino, pois sabia que ele ia querer lhe pedir alguma coisa. Passou-se uma semana e meia todo dia aquela ladainha; certo dia o tal Senhor ao chegar para o almoço viu o menino lá perto do portão e sem sair do carro perguntou: - Vem cá peste (hábito de nordestino, chamar os outros de peste, mas sem maldade) o que tanto tu queres falar comigo, vai desembucha!
 
O menino fez o sinal da cruz ergueu as duas mãos para o céu e se aproximou do homem. Antes que ele falasse alguma coisa o cara começou a ri sem se conter, então mostrou a mão esquerda aberta para o menino, como se pedisse que ele parasse por ali e continuou rindo desenfreado. O moleque parou e ficou olhando para ele rir e também sentiu vontade de rir, coisa que nunca fazia e o homem ao vê-lo rindo riu muito mais por achar que estava diante de uma assombração, terminou dizendo: - Arre égua moleque tu és mais feio rindo do que fazendo o sinal da cruz; então desceu do carro, parecia que ali havia acontecido uma empatia, e pediu desculpas do menino. Pôs a mão na cabeça do moleque e compassadamente falou: - O que você quer de mim?! O menino estremeceu dos pés à cabeça e com o rosto caído para direita em tom de súplica, rapidamente falou: - Um emprego, por favor!
 
O homem empalideceu e disse: - é por isso que você está aqui todos os dias, não é dinheiro que você está precisando? O menino em voz firme falou: - é emprego que eu preciso o dinheiro vem com ele; quero ser boy lá na sua loja, por favor e repetiu: - por favor. O Homem perguntou: - Quantos anos você tem, ainda é uma criança, não empregamos crianças. Rapidamente o menino falou: - Eu vou fazer quatorze anos, falta pouco. O Homem levou a mão no queixo em seguida ajustou os óculos e falou: - Vamos fazer o seguinte: - assim que você completar quatorze anos eu emprego você, tá bom?! Você tem a minha palavra. O semblante do menino caiu de tristeza, mas logo abriu o rosto e um riso pálido apareceu. O homem notou a frustração do moleque, entrou no carro e antes de ligá-lo olhou-o novamente, já compadecido. O menino falou: - Posso lhe dá um abraço?! O carro já estava ligado, o menino ficou sem saber se ele ouviu ou não.
 
No dia seguinte o garoto estava novamente na feira vendendo coisas para os outros, mas com um sorriso largo guardado no peito e quando falava com alguém sempre dizia que já estava empregado que em breve eles não o veriam mais por ali. Começou a fazer planos se imaginar bem vestido pensou até que no primeiro salário que recebesse iria comprar uma calça comprida já pronta, sonhava com isso todos os dias. Dia sim dia não ia na casa do futuro patrão e perguntava se queriam que ele fizesse alguma coisa, lavar o carro, fazer alguma compra, coisas assim. A mocinha empregada vinha atendê-lo e sempre dizia, não.
 
Num desses dias o homem vinha chegando em casa e viu o moleque próximo ao seu portão, então desceu do carro e lhe disse: - Estou lhe devendo um abraço da nossa última conversa, abraçou-o e perguntou, já completou os quatorze anos?! Novamente o semblante do menino caiu e o homem percebeu; em voz triste o menino falou: - Não, ainda não, tá demorando tanto, deixe eu ir pra lá o senhor não precisa me pagar o mesmo que paga pros outros, quando eu completar a idade ai o senhor ajusta – e com um sorriso singelo completou: - aí eu já vou estar por dentro de tudo; então, o que o senhor acha?! O homem coçou a barba e falou: - não eu não posso fazer isso, também não depende só de mim eu tenho meus irmãos por sócios e não quero confronto com eles.
 
No dia seguinte bem cedo, o moleque estava na loja bem antes dela abrir ao público. O gerente viu o menino sentado na frente da loja e perguntou: - Você está esperando por alguém daqui? Ele respondeu: - Sim, pelo dono; - Ah, tá – disse o gerente e prosseguiu: - Ele só chega lá pelas oito e meia, melhor vir mais tarde; o menino pensou: - Pelo menos não me xingou e falou: - Eu espero aqui mesmo. O gerente respondeu: - Então entre e fique sentado ali, ainda está muito cedo. E o moleque falou: - Eu posso varrer a loja para o senhor enquanto eu espero, posso passar pano também. O gerente respondeu: - Não, não se preocupe temos pessoas aqui para isso.
 
A linda manhã estava apenas começando, enquanto o gerente foi verificar outras coisas o menino pegou uma vassoura que estava próxima de si e começou a varrer o salão. O gerente seguiu com seus afazeres e esqueceu do moleque. Instantes depois como nunca fazia, o Homem dono da loja chegou e viu o menino já passando pano no chão; assustou-se e perguntou? – O que você está fazendo aqui? O menino falou: - vim pra cá ajudar, o senhor não precisa me pagar nada não, melhor que eu ficar lá na rua sem fazer nada; O Homem dono da loja passou a mão na cabeça e começou a ri e disse pro moleque: - Você é chato mesmo, tá bom termina aí, depois vai lá no meu escritório, pergunta do pessoal aí, onde é, agora eu estou com pressa.
 
O moleque vibrou e foi logo se apresentando para todos da loja que chegavam; alguns perguntavam: - quem é esse maluco, outros diziam: - parece que é esperto, mas no começo todos são assim e o menino só ouvindo a conversa, não falava nada.
 
Nesse interim o gerente voltou a aparecer e perguntou do menino: - o que é que você está fazendo rapaz, eu disse para você ficar esperando sentado ali. O menino respondeu: - Ele já chegou e disse para o senhor me levar depois lá com ele, mas não agora que ele está ocupado. O gerente ficou sem saber o que fazer, mas disse: - tá bom, mas deixe isso aí porque é serviço de outra pessoa. O menino olhou para o pano de chão, segurou no cabo, olhou penosamente para o gerente e disse: - tá bom, mas já falta tão pouco, deixe eu terminar, aí fica tudo bem. O gerente viu a disposição do menino e fez ouvido de mercador e o moleque terminou o serviço.
 
O menino começou a andar pela loja enquanto esperava ser chamado pelo seu pretenso patrão. Num determinado compartimento funcionava a alfaiataria e nela estava um senhor já de boa idade fazendo as costuras que os fregueses pediam para as suas roupas novas, um ajuste de bainha de calça um acerto de mangas e até confecção de ternos masculinos o que o mestre costureiro dizia ser especialista. O garoto encostou-se na porta e ficou observando o alfaiate trabalhar, com o rabo de olho por baixo dos óculos o tal senhor, também o observava, mas não lhe deu confiança, por fim, já depois de um bom tempo o expert largou a tesoura sobre a mesa, guardou os tubos de linha, virou-se para o menino e perguntou: - vai ficar o dia todo aí sem falar nada?! O menino que se movia para lá e para cá sempre com olhos para o corredor, respondeu: - Não quero lhe atrapalhar o senhor mexe com agulhas e tesouras pode se machucar se distrair à atenção. Então o alfaiate com voz de vaidoso lhe falou: - Engano seu, se quer saber eu enfio linha na agulha sem óculos e falo no telefone ao mesmo tempo e faço mais coisas que você nem imagina, num tô velho não. O menino ficou calado, mas pensou: - Metido a durinho né velhinho, quase ri, mas se segurou. O mestre olhou pra ele esperando resposta, mas viu semblante de riso no moleque, então ajustou os óculos e balbuciou: - hum! Surgia ali um carinho reciproco.
 
As horas estavam se passando e nada do patrão chamar o menino como havia prometido, beirava a hora do almoço e o velhinho já gozava do garoto: - ih, ele já se esqueceu de ti, tá lascado vai ficar com fome se for esperar; Ele a essa hora já está almoçando e é o que eu também vou fazer. O menino começou a ficar aflito e a mania de se bater como quem espanta mosquito chegou. Já estavam fechando a loja para o intervalo e todos iam para suas casas e voltavam as duas horas. O menino falou: - Tudo bem vou dar uma volta por ali quando abrir de novo eu volto; já estava saindo quando o alfaiate disse pra Ele: - Não, espere um pouco, eu almoço aqui mesmo e o que eu trouxe dá pra mim e pra você. O menino disse para que ele não se preocupasse, mas não adiantou, terminaram dividindo a marmita, era sem dúvida a celebração de uma amizade que duraria para sempre.
 
Poucos minutos depois das duas da tarde o gerente da loja avistou o menino e o levou até o seu patrão que se mostrava preocupado, sem saber se ele tinha almoçado ou não, depois de contar sobre o almoço foram ao que realmente interessava. - Muito bem, você venceu; e falou para o gerente que assistia a conversa: - esse menino vai trabalhar aqui com a gente, mas não é para sair da loja, somente serviço interno, nada mais que isso; coisas leves e somente de manhã por que à tarde ele tem que estudar, estamos entendidos?! – Perfeitamente falaram juntos moleque e gerente da loja. Acertaram salário e o menino ficou super feliz.
 
Podia terminar a história aqui e estava tudo bem, final feliz.
 
Mas não foi bem assim, como dizem os antigos “nem tudo são flores”; alguns dias após, o dono da loja precisou viajar, coisa que sempre fazia para fazer compras em São Paulo e a loja ficou sob a direção do outro sócio seu irmão. Certa manhã lá pelas dez e meia, alguém estava à procura do outro boy que fazia serviços externos, mas ele não estava na loja e o diretor queria um lanche. Falaram isso pra Ele: - então mandou chamar o menino e deu-lhe uma ordem: - Quero que você vá no lanche lá da esquina e compre para mim, um sanduiche de carne com alface e tomate em pão francês e uma laranjada; não demore!
 
A manhã estava agitada o movimento de pessoas pelas ruas estava intenso quase na esquina havia uma colisão de veículos e o tumulto estava generalizado, o moleque não sabia andar pelo centro, senão o caminho do ônibus à loja; ficou nervoso, mas arriscou-se a fazer o serviço. No caminho de tão nervoso esqueceu o tipo de sanduiche que o homem queria, tentou em vão se lembrar, pensou em voltar e perguntar novamente, mas temeu ser ralhado, vez que o cara não foi nada amistoso com ele de pronto sentiu sua antipatia.
 
O menino chegou no lanche e havia muita gente no balcão fazendo pedidos e lanchando, era o horário de pico para a lanchonete; preocupou-se com a demora e se meteu por entre os outros até chamar à atenção de um atendente, quando perguntado não soube dizer exatamente qual era o sanduiche, o balconista no afã de ajudar perguntou pra quem era dizendo conhecer todos daquela loja e sabia o que cada um gostava; o moleque falou e sentiu-se aliviado, lanche embalado pra viagem o menino voou de volta; bateu na porta, entrou e entregou o lanche pro então patrão; ele levou o olho pela embalagem e falou: - que diabo que você fez, não foi isso que eu lhe pedi, e mostrou o que havia no saco: um sanduiche de queijo com ovos alface e tomate num pão de hambúrguer (o famoso X-salada) - já beirava às onze e trinta e a face do homem enrubrou. Em vão o moleque pediu para trocar. - Coma você eu não quero mais, pode ir. O menino baixou a cabeça e foi se lastimar na alfaiataria com o seu velho amigo.
 
O alfaiate conhecia bem o tal sujeito, meneou a cabeça e mostrou-se pensativo. Naquele instante viu o calvário e a via crucis que o moleque iria passar até chegar no sábado, sabia, o cara não perdoava erros, então começou a se entristecer, lembrou-se dos bolinhos de filhós que todo o dia o menino trazia para merendar e dividia com ele num gesto de bom coração, chegou a ver o menino insistindo para ele aceitar: - tome, coma pelos menos um foi minha avó que fez e com café é tão gostoso; dizia o menino - era uma quinta feira. No dia seguinte o menino parecia ter esquecido o fato ocorrido, mas o costureiro, não; o menino percebeu e perguntou: - porque o senhor está triste? Ele respondeu: - Por nada não, às vezes eu fico assim.
 
No final da manhã de sexta-feira o gerente chamou o menino e acertou as contas dele. O moleque chorou copiosamente, relutou, mas foi se despedir do seu amigo e ficou ainda mais triste; ele não estava na alfaiataria, sobre a máquina de costura havia um bilhete para o garoto, estava escrito: - Antônio me perdoe, não queria me despedir de você, os amigos não se despedem, venha me visitar sempre que quiser. Meu abraço!
 
Esta foi a minha primeira decepção com pessoas, um erro bobo, uma sentença pesada. Nunca esqueci.
 
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Antônio Souza
(Contos/Insólitos)
Mao/AM 09/03/2019
 
Música: https://youtu.be/KtL08d4xfaQ
Tom Jobim, Miucha e Chico - Sei lá ( A vida tem sempre razão)
 
 
www.antonisouzaescritor.com  
 
Antônio Souza
Enviado por Antônio Souza em 09/03/2019
Alterado em 03/05/2019
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